Uma potencial causa de falha reprodutiva em vacas leiteiras do Norte da Grecia

Autor: M. Lefkaditis, R. Mpairamoglou, A. Sossidou, K. Spanoudis, M. Tsakiroglou

Resumo

A infecção por Neospora caninum tem sido relatada em um grande número de hospedeiros intermediários, como ruminantes, coelhos, ratos, entre outros, mas a neosporose emergiu como uma doença séria em bovinos e cães em todo o mundo. Abortos e outros problemas de infertilidade têm sido relatados em vacas infectadas, resultando em grandes perdas econômicas para os agricultores. O objetivo de nosso estudo foi avaliar a soroprevalência de N. caninum em vacas leiteiras do Norte da Grécia (região de Xanthi) utilizando a técnica de anticorpos fluorescentes indiretos. Amostras de sangue foram coletadas de 875 vacas leiteiras da raça Holandesa-Frísia e testadas para anticorpos contra Neospora caninum.   Entre as vacas estudadas, 184 (21,03%) foram positivas para anticorpos contra N. caninum. Concomitantemente, suas fazendas tinham um histórico conhecido de problemas de infertilidade, como abortos, aumento no número de inseminações artificiais necessárias para concepção, maior taxa de retorno ao estro e retenção de membranas fetais.

1.    Introdução

Neospora caninum (Apicomplexa: Coccidia) é um parasita intracelular obrigatório que é o agente etiológico da doença polissistêmica neosporose (Donahoe et al., 2015; Dubey et al., 2013). Esse parasita apicomplexa foi inicialmente reconhecido em 1984 em cães na Noruega (Bjerkas et al., 1984) e descrito como um novo gênero e espécie em 1988. No ciclo de vida de N. caninum, cães e outros canídeos relacionados são os únicos hospedeiros definitivos que eliminam através de suas fezes os oocistos não esporulados no ambiente, além de desempenharem o papel de hospedeiro intermediário. Os cães podem adquirir a infecção pela ingestão de tecidos infectados de hospedeiros intermediários, por transmissão vertical ou pela ingestão de oocistos esporulados no ambiente. Assim, os cães desempenham um papel importante na transmissão horizontal e na manutenção da infecção por N. caninum em bovinos leiteiros.

N. caninum tem sido relatado em um grande número de hospedeiros intermediários, como ruminantes, coelhos, camundongos, etc. Mas a neosporose emergiu como uma doença grave em bovinos e cães em todo o mundo. Enquanto esta doença tem um impacto considerável na reprodução em bovinos, em cães adultos e mais velhos parece ser assintomática. Foi demonstrado que de 12 a 42% dos fetos bovinos abortados mundialmente estão infectados com N. caninum.

N. caninum causa abortos tanto em bovinos leiteiros quanto em bovinos de corte. Os abortos podem ocorrer a partir do terceiro mês de gestação até o parto  de maneira epidêmica ou endêmica. N. caninum também pode causar distúrbios de viabilidade fetal ou defeitos congênitos neurológicos em bezerros recém-nascidos e naqueles com menos de 2 meses de idade. Os bezerros jovens infectados por N. caninum podem apresentar sinais neurológicos, baixo peso ao nascer, dificuldades para se levantar e ficar em pé, membros posteriores e/ou anteriores flexionados ou hiper estendidos, e em alguns casos exoftalmia ou aparência assimétrica dos olhos. No entanto, a maioria dos bezerros nascidos com infecção congênita permanece clinicamente saudável.

As infecções naturais por N. caninum podem ocorrer através de transmissão horizontal (lateral) ou transplacentária (vertical, congênita). Em bovinos e outras espécies bovinas domesticadas, a transmissão transplacentária é a via de infecção mais frequente, sendo observada em até 93,7% dos casos. Nos hospedeiros canídeos definitivos, a transmissão horizontal através da ingestão de tecidos infectados com taquizoítos, cistos teciduais ou alimentos e água contaminados com oocistos esporulados é a rota predominante de infecção. A transmissão lactogênica de N. caninum foi demonstrada experimentalmente em bezerros recém-nascidos alimentados com colostro infectado com taquizoítos, mas há um debate em curso sobre se isso ocorre naturalmente. Foi demonstrado que cães alimentados com leite infectado com taquizoítos de N. caninum não eliminam oocistos.

A neosporose é reconhecida como uma das causas mais importantes de problemas reprodutivos e abortos em bovinos em todo o mundo. Os abortos e a mortalidade neonatal podem causar perdas financeiras severas, especialmente quando a doença é endêmica ou epidêmica. O impacto econômico está diretamente relacionado com os custos associados ao aborto e indiretamente com o custo dos serviços veterinários, recriação, perda na produção de leite e substituição se vacas que abortaram forem descartadas.

O conhecimento das vacas infectadas e não infectadas em uma região aumentaria nossa compreensão do impacto econômico devido à infecção por N. caninum e nos ajudaria a erradicar a doença.

O objetivo deste estudo foi avaliar a soroprevalência de N. caninum em bovinos leiteiros do norte da Grécia utilizando a técnica de anticorpos fluorescentes indiretos (IFAT)

2. Materiais e métodos

2.1. Gado e manejo do rebanho

Este foi um estudo prospectivo realizado entre março de 2016 e maio de 2018 em 5 fazendas leiteiras Holstein-Friesian localizadas na prefeitura de Xanthi (Norte da Grécia). Todas as fazendas relataram baixas taxas de fertilidade e altas taxas de aborto e forneceram o histórico reprodutivo de suas vacas. Um total de 875 vacas leiteiras Holstein-Friesian (idade média de 4,28 anos) foi incluído no estudo. Os rebanhos eram mantidos em instalações do tipo free-stall e foram divididos de acordo com o estágio do ciclo reprodutivo e produção de leite. Todas as vacas receberam uma dieta balanceada e foram vacinadas contra rinotraqueíte infecciosa bovina (IBR), diarreia viral bovina (BVD), coronavírus, rotavírus e Escherichia coli, conforme o programa nacional de vacinação. Não houve manejo de acasalamento sazonal no rebanho, mas a inseminação artificial foi realizada ao longo do ano.

2.2. Técnica de imunofluorescência indireta

Amostras de sangue foram coletadas da veia jugular de cada vaca no momento da detecção precoce da gestação através de exame retal (cerca de 28 dias após a inseminação em novilhas e cerca de 34 dias em multíparas). Dentro de 30 minutos após a coleta, as amostras foram centrifugadas a 2000 rpm por 10 minutos, e o soro foi separado e armazenado em tubos de teste rotulados a -4 °C, aguardando exame para detecção de anticorpos contra N. caninum.

Existem muitos testes sorológicos disponíveis para o diagnóstico da infecção por N. caninum em bovinos. Utilizamos a técnica de IFAT (Imunofluorescência Indireta por Anticorpos), baseada no protocolo descrito por Dubey et al., 1988. Esta técnica é comumente utilizada para o diagnóstico de infecções por protozoários e baseia-se na marcação de anticorpos com um corante fluorescente (fluoresceína) que emite uma coloração verde-amarela em luz ultravioleta. Um título de anticorpos de 1:200 ou superior foi considerado positivo, e um título <1:200 foi considerado negativo (Silva et al., 2007; Dubey, 2003; Reichel and Drake, 1996).

2.3. Acompanhamento do rebanho durante o período do estudo

O número de inseminações artificiais, intervalo entre partos e resultados de gestação foram avaliados. Em caso de aborto, os fetos abortados foram submetidos a necropsia. Bezerros nascidos de mães positivas para N. caninum foram examinados clinicamente.

2.4. Análise estatística

As análises estatísticas foram realizadas com o software SPSS (IBM DPDD Statistics®, Versão 19.0). Os dados foram analisados aplicando o teste Qui-Quadrado. A diferença entre grupos (mães soropositivas para N. caninum versus mães soronegativas para N. caninum) foi considerada estatisticamente significativa se p ? 0,05. Resultados

3. Resultados

3.1. Status sorológico dos rebanhos

Entre as 875 vacas incluídas no estudo, 184 (21,03%) foram soropositivas para a detecção de anticorpos contra N. caninum por IFAT, enquanto 691 foram soronegativas (78,97%).

3.2. Número de inseminações artificiais

O número total de inseminações artificiais utilizadas no grupo de vacas soropositivas foi de 721 doses, enquanto no grupo de vacas soronegativas foi de 1651 doses. O número médio de inseminações artificiais realizadas até a concepção foi de 2,39 em vacas soronegativas, enquanto em vacas soropositivas aumentou para 3,92 (p < 0,05) (Tabela 1). No grupo de vacas soropositivas, 170 de 184 (92%) retornaram ao estro, enquanto no grupo de vacas soronegativas, 206 de 691 (30%) retornaram ao estro.

Tabela 1. Inseminação artificial, intervalo entre partos e resultados da gestação.

N, number of dams; SD, standard deviation.

3.3. Intervalo entre partos e resultados da gestação

O intervalo entre partos foi de 199 dias nas vacas soropositivas para N. caninum, enquanto nas vacas soronegativas foi significativamente menor, 120 dias (p < 0,05). O número de abortos foi significativamente maior nas vacas soropositivas em comparação com as vacas soronegativas: 52 versus 18, respectivamente (p < 0,05) (Tabela 1). Após o aborto, foi registrada a retenção de membranas fetais em 11 fêmeas soropositivas. A necropsia dos fetos abortados revelou lesões inflamatórias nos órgãos internos, principalmente no cérebro e músculos esqueléticos. Também foi observada autólise nos tecidos fetais coletados dos fetos abortados. Seis bezerros neonatais nascidos de fêmeas soropositivas apresentaram sinais clínicos de neosporose, incluindo exoftalmia, ataxia, incoordenação e fraqueza, hidrocefalia e hiperextensão dos membros posteriores.

4. Discussão

Este é o primeiro relatório na Grécia em que a soroprevalência de N. caninum foi avaliada em vacas leiteiras por IFAT. Até o momento, havia apenas um relatório anterior no qual a infecção por N. caninum foi avaliada em amostras de leite pelo ensaio imunoenzimático (ELISA) (Sotiraki et al., 2008). IFAT é o primeiro teste sorológico utilizado para o diagnóstico de neosporose e é a técnica aceita na pesquisa de anticorpos contra N. caninum, sendo amplamente utilizada para o diagnóstico de infecção por N. caninum em estudos epidemiológicos realizados em outros animais domésticos e selvagens.

No presente estudo, a porcentagem de abortos em matrizes soropositivas para N. caninum foi 10 vezes maior do que nas soronegativas (61,9% versus 2,6%, respectivamente). Esses achados estão em linha com um estudo no Irã, que também encontrou uma porcentagem de abortos três vezes maior em matrizes soropositivas em comparação com as soronegativas (21,6% versus 7,3%, respectivamente). Spilovska et al. mostraram uma correlação entre a presença de anticorpos específicos para N. caninum e a ocorrência de abortos. Também foi demonstrado que <5% das vacas podem ter abortos repetidos devido à neosporose. Além disso, um estudo de coorte mostrou que as matrizes infectadas por N. caninum com histórico de aborto tinham um risco de aborto 5,6 vezes maior do que as vacas congenitamente infectadas que não tinham abortado antes. Em nosso estudo, a proporção de vacas soropositivas com histórico de aborto (28,26%) foi significativamente maior do que a proporção de vacas com os mesmos sinais clínicos, mas soronegativas (2,60%). Este achado fornece evidências indiretas de que N. caninum pode estar envolvido em abortos de vacas da região estudada.

A soroprevalência de N. caninum que encontramos por IFAT em bovinos leiteiros foi de 21,03%, sendo maior do que a soroprevalência relatada na Hungria (3,4%), Alemanha (4,1%), Irlanda (12,6%), Espanha (11,2%) e na República Tcheca (3,2%), e menor do que na Bélgica (29%), Alemanha (27%), Itália (24,4%), Eslováquia (24,1%) e Dinamarca (22%. Em alguns países europeus (Alemanha, Holanda, Espanha e Suécia), a prevalência de N. caninum varia entre 16% e 76%. Bartels et al. realizaram um estudo nos Países Baixos e a prevalência média em rebanhos aleatórios foi de 10,8% (variação: 1,0% a 48,7%), enquanto em rebanhos epidêmicos de aborto, a média foi de 31,2% (variação: 11,3% a 61,6%). No oeste da Romênia, a faixa de prevalência de neosporose foi mostrada como sendo de 10% a 52,2% em diferentes regiões.

Há evidências de que a raça do gado pode afetar a soroprevalência de N. caninum em um rebanho. Um estudo realizado na Bélgica encontrou uma taxa de aborto mais alta (28,6%) em vacas leiteiras soropositivas para N. caninum em comparação com vacas de corte soropositivas (14,0%).

No entanto, um estudo realizado na Espanha encontrou taxas semelhantes de aborto entre vacas leiteiras e de corte. São necessárias mais investigações para determinar se as raças melhoradas de gado leiteiro são mais suscetíveis à infecção por N. caninum do que o gado zebu ou cruzamentos.

Em relação ao número de inseminações aplicadas antes de cada concepção, observamos que as vacas soropositivas para N. caninum necessitaram de 1,64 vezes mais inseminações em comparação com as soronegativas. As vacas soropositivas também retornaram mais frequentemente ao estro e tiveram um período mais longo de dias abertos, o que está associado tipicamente a uma redução na lucratividade. Esses achados estão de acordo com estudos anteriores.

A associação entre o retorno ao estro após a gestação e a ocorrência de N. caninum em um rebanho também precisa ser avaliada mais detalhadamente. Um estudo de caso-controle canadense sugeriu que existe uma associação positiva entre a ocorrência de abortos relacionados ao N. caninum em um rebanho e a taxa anual de vacas que retornam ao estro após a gestação. Além disso, uma alta taxa de perdas de gestação precoce pode aumentar a chance de hospedeiros definitivos terem acesso ao material infeccioso e, portanto, também pode aumentar a taxa de transmissão horizontal mediada por oocistos. Esta suposição é apoiada pelos resultados de outros quatro estudos. No entanto, outros estudos epidemiológicos não mostraram indicação de que N. caninum seja capaz de causar perdas de gestação precoce.

A retenção de membranas fetais e subsequente metrite ocorrem raramente entre vacas infectadas com N. caninum. Em nosso estudo, a retenção de membranas fetais após o aborto foi de 5,98% nas vacas soropositivas.

Seis bezerros neonatais nascidos de matrizes soropositivas em nosso estudo apresentaram sinais clínicos de neosporose, como exoftalmia, ataxia, falta de coordenação, hidrocefalia e hiperextensão dos membros posteriores. Sinais clínicos semelhantes, bem como a incapacidade de se levantar e baixo peso ao nascimento, foram descritos anteriormente por Dubey e Schares (2011) em bezerros nascidos de matrizes soropositivas para N. caninum. Além disso, diferentes estudos sugerem que bezerros nascidos de matrizes com histórico prévio de infecção fetal por N. caninum e aborto podem ter infecções congênitas por N. caninum e/ou disfunções neurológicas ao nascimento, incluindo distúrbios neurológicos leves e encefalomielite não supurativa leve.

Com base em nossa experiência, as medidas preventivas para a infecção por N. caninum em bovinos devem se concentrar na limitação do consumo de carne crua pelos canídeos, em vez de na quimioterapia. Esta última parece ser economicamente inviável, pois é usada principalmente como medida preventiva e seu uso a longo prazo leva à presença de resíduos inaceitáveis de leite ou carne, seguidos por períodos de retirada para seu consumo e grandes perdas econômicas.

5. Conclusão

"Até onde os autores têm conhecimento, este é o primeiro relato de uma abordagem sorológica para avaliação da infecção por N. caninum na Grécia utilizando a técnica de IFAT. Nossos achados sugerem que a neosporose tem uma alta soroprevalência no norte da Grécia, com uma distribuição geográfica muito maior do que se acreditava anteriormente. Também observamos um aumento significativo no número de inseminações necessárias para concepção em matrizes soropositivas para N. caninum em comparação com matrizes soronegativas, assim como um aumento substancial no intervalo entre partos e nos abortos em matrizes soropositivas. Todos esses fatores podem resultar em grandes perdas financeiras, especialmente se medidas preventivas para o controle da disseminação de N. caninum não forem aplicadas.

Recomendamos as seguintes medidas preventivas que podem evitar perdas financeiras causadas pela quimioterapia: quarentena e teste de vacas de reposição e outros novos animais (os agricultores podem decidir remover vacas infectadas ou sua prole do rebanho), minimização da contaminação de pastagens, alimentos e material de alimentação com fezes de cães e outros hospedeiros definitivos potenciais, controle regular do fornecimento de água, controle regular de roedores para eliminar um possível reservatório de N. caninum no gado e controle do manejo reprodutivo (por exemplo, o controle da transferência de embriões de matrizes infectadas para receptoras não infectadas pode prevenir a transmissão endógena transplacentária do parasita, inseminação artificial de matrizes soropositivas com sêmen de touros de carne)."